A
História da Confissão de Fé de Westminster
Por Alderi Souza de Matos
A Confissão de Fé de Westminster é a principal declaração doutrinária
adotada oficialmente pela Igreja Presbiteriana do Brasil. Ela foi um dos
documentos aprovados pela Assembléia de Westminster (1643-1649), convocada pelo
Parlamento inglês para elaborar novos padrões doutrinários, litúrgicos e
administrativos para a Igreja da Inglaterra. Para se entender as circunstâncias
da formulação desse importante documento, é preciso relembrar a história da
Reforma Inglesa.
1. Antecedentes
Até 1534, a Inglaterra havia sido católica romana por muitos séculos. Nesse
ano, sob a liderança do rei Henrique VIII, essa nação rompeu com Roma e aprovou
o Ato de Supremacia, pelo qual o rei passou a ser o chefe da Igreja da
Inglaterra. Assim sendo, passou a existir uma igreja nacional inglesa, separada
de Roma, mas ainda católica, com o nome de Igreja Anglicana.
Com a morte de Henrique VIII em 1547, subiu ao trono o seu filho adolescente
Eduardo VI. Sob a liderança de Thomas Cranmer, arcebispo de Cantuária, foram
elaborados dois importantes documentos, ambos influenciados pela teologia
calvinista: os Trinta e Nove Artigos e o Livro de Oração Comum. Várias outras
reformas foram realizadas, tendo-se a impressão de que a fé protestante iria
triunfar. Todavia, a morte prematura do jovem rei, em 1553, interrompeu
bruscamente esse processo.
Eduardo foi sucedido por sua meia-irmã, Maria Tudor, mais tarde conhecida como
“Maria, a Sanguinária”. Ela era filha de Henrique VIII e da princesa católica
espanhola Catarina de Aragão. De imediato, Maria se dispôs a anular o que seu
pai e seu irmão haviam feito e levar a Inglaterra de volta para a Igreja de
Roma. O arcebispo Cranmer e muitos outros líderes da Reforma foram queimados na
fogueira.
Muitos protestantes fugiram para o continente, sendo que um bom número deles se
refugiou em Genebra, onde o reformador João Calvino estava no auge da sua
influência. Eles organizaram uma igreja presbiteriana, tendo como pastor um dos
refugiados, o escocês João Knox. Outro refugiado, Miles Coverdale, e alguns
companheiros fizeram uma nova tradução das Escrituras, que ficou conhecida como
a Bíblia de Genebra. Foi a primeira Bíblia de tamanho pequeno a ser publicada e
a primeira Bíblia em inglês na qual os livros eram divididos em capítulos e
versículos.
Com a morte de Maria em 1558, sua meia-irmã Elizabete subiu ao trono para um
longo reinado de 45 anos. O Ato de Supremacia foi restabelecido e os
protestantes exilados tiveram permissão para retornar. Eles voltaram para a
Inglaterra e a Escócia com a sua Bíblia de Genebra e com maior convicção acerca
do calvinismo e do presbiterianismo.
2. Os puritanos
Nesse contexto, solidificou-se um movimento cujas raízes mais remotas vinham
desde o pré-reformador João Wyclif (século 14), passando pelo tradutor da
Bíblia William Tyndale (†1536) e muitos outros líderes. Firmemente apegados às
Escrituras e à teologia calvinista, esses protestantes começaram a insistir
numa reforma genuína da igreja inglesa, com uma forma de governo, um sistema de
doutrinas, um culto e uma vida mais puros, ou seja, mais bíblicos. Com isso,
por volta de 1565 eles passaram a ser chamados de “puritanos”.
A rainha Elizabete alarmou-se com o crescimento do puritanismo e tudo fez para
forçar os puritanos a se submeterem aos padrões religiosos vigentes. Todavia, o
movimento continuou a crescer. Um autor diz que a Inglaterra nunca experimentou
uma transformação moral tão grande como a que ocorreu entre o meio do reinado
de Elizabete e a convocação do Longo Parlamento. A Inglaterra se tornou o povo
de um livro, a Bíblia, que era lida nas igrejas e nos lares, gerando grande
vitalidade espiritual. (Ver John Richard Green, em Uma Breve História do Povo
Inglês).
Com a morte de Elizabete em 1603, Tiago VI da Escócia, filho de Maria Stuart,
tornou-se Tiago I, rei da Inglaterra e da Escócia, e chefe da igreja. Os
puritanos nutriam grandes esperanças em relação ao novo rei, que havia sido
educado pelos presbiterianos da Escócia. Todavia, ele os decepcionou
profundamente, visto estar muito apegado ao sistema episcopal de governo
eclesiástico. Ele disse: “Vou fazer com que se submetam ou os expulsarei do
país, ou coisa pior”. No sei reinado, um grupo de puritanos foi inicialmente
para a Holanda e depois para a Nova Inglaterra, na América do Norte. A única
coisa positiva que esse rei fez na área religiosa foi aprovar uma nova e
influente tradução da Bíblia, que ficou conhecida como a Versão do Rei Tiago
(King James Version, 1611).
3. A Assembléia de Westminster
Tiago foi sucedido no trono por seu filho Carlos I, que reinou de 1625 a 1649.
Seu principal conselheiro era William Laud, arcebispo de Cantuária, um adepto
da teologia arminiana e da uniformidade religiosa. Em 1637, Carlos I e Laud
tentaram fazer com que os presbiterianos da Escócia se submetessem ao governo e
culto da Igreja da Inglaterra, com seu sistema episcopal (bispos e arcebispos).
No ano seguinte, os escoceses assinaram um Pacto Nacional no qual se
comprometiam a defender o presbiterianismo e entraram em guerra contra o rei.
Carlos precisava de mais homens e dinheiro para lutar contra os escoceses e
assim foi forçado a convocar a eleição de um Parlamento. Para seu horror, os
ingleses elegeram um Parlamento puritano. Ele rapidamente dissolveu o
parlamento e convocou nova eleição, que resultou em uma maioria puritana ainda
mais expressiva. O rei tentou novamente tentou dissolver o Parlamento, que
entrou em guerra contra ele. Estava iniciada a guerra civil inglesa.
Entre outras coisas, esse Parlamento puritano voltou sua atenção para a questão
religiosa. Há 75 anos os puritanos vinham insistindo que a Igreja da Inglaterra
tivesse uma forma de governo, doutrinas e culto mais puros. Assim sendo, o
Parlamento convocou a “Assembléia de Teólogos de Westminster”, que ficou
composta de 121 dos ministros mais capazes da Inglaterra, além de 20 membros da
Câmara dos Comuns e 10 membros da Câmara dos Lordes. Todos os ministros, exceto
dois, eram da Igreja da Inglaterra. Praticamente todos eles eram puritanos,
calvinistas. Infelizmente, não havia unanimidade entre eles quanto à forma de
governo: a maioria era composta de presbiterianos, muitos eram partidários da
forma congregacional e alguns defendiam o episcopalismo. Os debates mais longos
e acalorados foram travados nessa área.
A Assembléia de Westminster iniciou seus trabalhos na Abadia de Westminster, em
Londres, no dia 1° de julho de 1643, e continuou em atividade durante cinco
anos e meio. Nesse período, houve 1163 reuniões do plenário e centenas de reuniões
de comissões e subcomissões.
4. A conexão escocesa
Mal haviam começado os trabalhos, as forças parlamentares começaram a ficar em
desvantagem na guerra. Rapidamente foi enviada uma delegação à Escócia em busca
de auxílio. Os escoceses concordaram em enviar socorro, mediante duas
condições: (a) todos os membros da Assembléia de Westminster e do Parlamento
deviam assinar uma Liga e Pacto Solene a ser redigido pelos escoceses; (b) os
escoceses iriam nomear alguns representantes junto à Assembléia de Westminster.
Ao assinarem esse documento, os ingleses se comprometeram a manter e defender a
Igreja Presbiteriana da Escócia e a realizarem uma reforma da igreja “na
Inglaterra e na Irlanda em sua doutrina, governo, culto e disciplina, de acordo
com a Palavra de Deus e o exemplo das melhores igrejas reformadas”.
Os escoceses enviaram seis delegados à Assembléia de Westminster – quatro
pastores e dois presbíteros – sem direito a voto. Os ministros eram: Alexander
Henderson, Robert Baillie, George Gillespie e Samuel Rutherford. Esses poucos
representantes escoceses exerceram uma influência decisiva sobre a Assembléia.
Com a chegada dos escoceses e a assinatura da Liga e Pacto Solene em setembro
de 1643, houve uma mudança radical no trabalho da Assembléia. Antes disso, a
maior parte do tempo havia sido dedicada a uma revisão dos Trinta e Nove
Artigos e não se pensara em elaborar uma nova Confissão de Fé. Agora os Trinta
e Nove Artigos foram postos de lado e passou-se a fazer uma reforma profunda na
Igreja da Inglaterra.
A Assembléia de Westminster era um conjunto de homens não somente eruditos, mas
profundamente espirituais. Gastou-se muito tempo em oração e tudo foi feito com
espírito de reverência. Robert Baillie, um dos representantes escoceses,
descreveu um dos dias de jejum e oração: “Depois que o Dr. Twisse deu início
com uma breve oração, o Sr. Marshall orou longamente por duas horas,
confessando mui piedosamente os pecados dos membros da Assembléia... Depois
disso, o Sr. Arrowsmith pregou por uma hora, e então foi cantado um salmo. Em
seguida, o Sr. Vines orou por quase duas horas, o Sr. Palmer pregou por uma
hora e o Sr. Seaman orou por quase duas horas; em seguida, foi cantado um
salmo. Depois disso, o Sr. Henderson os levou a uma breve e suave reflexão sobre
as faltas confessadas e outras faltas vistas na Assembléia, para serem
corrigidas. O Dr. Twisse encerrou com breve oração e bênção. Deus estava
presente de modo tão claro nesse exercício devocional que nós certamente
esperamos uma bênção tanto sobre os assuntos da Assembléia quanto sobre todo o
reino”.
5. O trabalho da Assembléia
Durante seus cinco anos e meio de atividade, a Assembléia de Westminster
produziu os chamados Padrões Presbiterianos. À medida que era concluído, cada
documento era encaminhado ao Parlamento como o “humilde conselho” da
Assembléia. O Parlamento não aprovou automaticamente o trabalho da Assembléia,
mas gastou muito tempo estudando e discutindo cada documento. Os Padrões
Presbiterianos, na ordem em que foram concluídos pela Assembléia, são os
seguintes: (a) Diretório do Culto Público a Deus: foi concluído em dezembro de
1644 e aprovado pelo Parlamento em janeiro de 1645. Substituiu o Livro de
Oração Comum. (b) Forma de Governo Eclesiástico e Ordenação: foi concluída em
novembro de 1644 e aprovada pelo Parlamento em 1648. Era uma forma
presbiteriana de governo e substituiu o episcopalismo na Igreja da Inglaterra.
(c) Confissão de Fé: foi concluída em dezembro de 1646 e aprovada pelo
Parlamento em março de 1648. (d) Catecismos Maior e Breve: foram concluídos no
final de 1647 e aprovados pelo Parlamento em setembro de 1648. (e) Saltério:
versão métrica dos salmos para o culto; havia várias versões concorrentes, mas
a de Francis Rous, membro do Parlamento e da Assembléia, foi finalmente aprovada
em novembro de 1645, após uma extensa revisão. Foi aprovado pelo Parlamento no
ano seguinte.
6. A Confissão de Fé
O esboço inicial da Confissão de Fé de Westminster foi preparado por duas
comissões a partir de outubro de 1644, com a plena participação dos
representantes da Igreja da Escócia. O plenário da Assembléia discutiu o
documento de julho de 1645 a dezembro de 1646. Alguns dos debates foram
acalorados, especialmente sobre temas como o Decreto de Deus, a Liberdade
Cristã e a Liberdade de Consciência, e a liderança de Cristo. De um modo geral,
houve uma notável unanimidade entre os participantes.
No dia 26 de novembro de 1646 o texto ficou pronto, com a exceção do prefácio e
de algumas emendas. Estes foram concluídos no 4 de dezembro, quando a Confissão
de Fé foi apresentada à Câmara dos Comuns. Todavia, o Parlamento exigiu a
apresentação de textos bíblicos de apoio, cuja preparação e discussão continuou
até abril de 1647. Em 29 de abril, a Confissão com as passagens bíblicas foi
apresentada às duas câmaras. A Câmara dos Comuns determinou a impressão de 600
cópias, somente para os membros do Parlamento e da Assembléia. O título era: “O
humilde conselho da Assembléia de teólogos que por autoridade do Parlamento ora
está reunida em Westminster... com respeito a uma Confissão de Fé, com a adução
de citações e textos da Escritura”.
A Confissão foi aprovada pelo Parlamento somente em 1648, com o seguinte
título: “Artigos de religião cristã, aprovados e sancionados por ambas as casas
do Parlamento, segundo o conselho da Assembléia de teólogos ora reunida em
Westminster por autoridade do Parlamento”.
A Confissão de Fé é uma expressão da teologia agostiniana e calvinista que há
mais de um século vinha influenciando os teólogos ingleses. Especificamente, a
forma da Confissão foi influenciada pelos chamados Artigos Irlandeses,
elaborados pelo bispo Ussher em 1615. Quanto ao esquema teológico geral sob o
qual os teólogos de Westminster agruparam suas principais doutrinas, trata-se
do sistema conhecido como Teologia Federal ou Teologia do Pacto (Pacto das
Obras e Pacto da Graça).
Como uma declaração da doutrina reformada e como uma afirmação do calvinismo do
século 17, a Confissão de Fé é um documento extremamente moderado e judicioso.
William Beveridge conclui: “Devemos agradecer a Deus por essa declaração sábia,
completa e equilibrada de nossa fé, que chegou até nós como uma preciosa
herança da Assembléia de Westminster”.
7. Eventos subseqüentes
Com o auxílio dos escoceses, as forças parlamentares lideradas por Oliver
Cromwell esmagaram o rei Charles e seus exércitos. Cromwell e o exército inglês
eram partidários do congregacionalismo; assim sendo, os presbiterianos foram
expulsos do Parlamento em 1648. O rei foi decapitado na Torre de Londres em
janeiro de 1649, sendo então criada a Comunidade (Commonwealth), tendo Cromwell
como Lorde Protetor da Inglaterra e da Escócia.
Cromwell morreu em 1658 e dois anos depois foi restaurada a monarquia, com
Carlos II no trono dos dois países. O episcopado foi restaurado, sendo
aprovadas rígidas leis que impunham submissão ao governo e ao culto da Igreja
da Inglaterra. Cerca de dois mil ministros presbiterianos foram expulsos de
suas igrejas e residências. Seguiu-se um longo período de intolerância e
cerceamento. Somente no século 19 foi organizada a Igreja Presbiteriana da
Inglaterra (1876).
Na Escócia, os Padrões de Westminster foram prontamente adotados pela
Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana, substituindo os antigos documentos
que vinham desde a época de John Knox. Isso é notável se lembrarmos que a
Assembléia de Westminster era composta de 121 ministros puritanos ingleses e
apenas quatro ministros escoceses. Os presbiterianos escoceses agiram assim por
causa dos méritos intrínsecos dos Padrões de Westminster e em especial devido
ao seu desejo de promover a unidade entre os presbiterianos das Ilhas
Britânicas. Através da imigração e do esforço missionário dos presbiterianos
escoceses, esses padrões foram levados para a Irlanda do Norte, Estados Unidos,
Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Brasil e até aos confins da
terra.
8. Relevância atual
A Confissão de Fé de Westminster é considerada uma das melhores e mais
equilibradas exposições da fé reformada já escritas. Suas definições
doutrinárias foram cuidadosamente elaboradas por alguns dos homens mais cultos
e piedosos do século 17. Talvez a sua linguagem e algumas de suas ênfases
pareçam estranhas à nossa mentalidade do início do século 21. Todavia, temos de
reconhecer que a maior parte das suas formulações continuam plenamente válidas
para os dias atuais. Embora seja um documento muito importante e valioso para
os reformados, ela não está no mesmo nível da Escritura, ficando subordinada à
mesma.
A Confissão de Fé pode ser considerada um pequeno manual de teologia bíblica.
Seus 33 capítulos abordam os temas mais importantes da teologia cristã,
conforme segue: a doutrina da Escritura Sagrada – cap. 1; a doutrina de Deus
(ser e obras) – caps. 2-5; a doutrina do homem e da redenção – caps. 6-9; a
doutrina da aplicação da salvação – caps. 10-15; a doutrina da vida cristã –
caps. 16-19; a doutrina do cristão na sociedade – caps. 20-24; a doutrina
da igreja – caps. 25-31; e a doutrina das últimas coisas – caps. 32-33.
Os principais temas da teologia reformada são abordados na Confissão de Fé de
Westminster: (a) a autoridade das Escrituras – cap. 1; (b) a soberania de Deus
e a eleição – caps. 3, 10; (c) o conceito do pacto – cap. 7; (d) a integração
da doutrina com a vida cristã – cap. 16; (e) a relação entre lei e evangelho –
cap. 19; (f) a importância da igreja e dos sacramentos – caps. 25-29; (g) o
sistema de governo – cap. 31; (h) o relacionamento entre o reino de Deus e o
mundo. Esperamos que essa considerações estimulem os leitores a conhecerem
melhor esse documento histórico que é parte essencial da nossa identidade
presbiteriana.
Referências:
- A Confissão de Fé, O Catecismo Maior, O Breve Catecismo. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1991.
- Hodge, A.A. Confissão de Fé de Westminster comentada por A.A. Hodge. São Paulo: Editora Os Puritanos,
1999.
- Beveridge, William. A short history of the Westminster Assembly. Revised and
edited by J. Ligon Duncan III. Greenville, SC: Reformed Academic Press, 1993.
- De Witt, John Richard, Terry L. Johnson e F. Solano Portela. O que é a
fé reformada? São Paulo: Editora Os Puritanos, 2001.
- Lingle, Walter L. Presbyterians: their history and beliefs. Richmond: John
Knox, 1960.
Nenhum comentário:
Postar um comentário