sexta-feira, 29 de março de 2013

Ellen White e a doutrina monstruosa.


Por Clóvis Gonçalves
No livro O Grande Conflito, existe uma declaração que Leandro Quadros considera a síntese do pensamento de Ellen White sobre a predestinação calvinista. Ei-la:
Estas monstruosas doutrinas são essencialmente as mesmas que o ensino posterior dos educadores e teólogos populares, de que não há lei divina imutável como norma do que é reto, mas que o padrão da moralidade é indicado pela própria sociedade, e tem estado constantemente sujeito a mudança. Todas estas idéias são inspiradas pelo mesmo espírito superior, sim, por aquele que mesmo entre os habitantes celestiais, sem pecado, iniciou sua obra de procurar derruir as justas restrições da lei de Deus.

Sai daí a base de Quadros para afirmar que a doutrina calvinista é satânica. Essa afirmação encontra-se no capítulo 14, o mesmo em que White menciona com aprovação o nome e as doutrinas de eminentes predestinistas, entre os quais Martinho Lutero, Ulrich Zwinglio, John Knox, John Bunyan, Richard Baxter, John Flavel, Joseph Alleine e George Whitefield: “O grande princípio mantido por aqueles reformadores... foi a autoridade infalível das Escrituras Sagradas como regra de fé e prática... A Bíblia era a sua autoridade, e por seus ensinos provavam todas as doutrinas e reivindicações”, disse ela sobre todos eles. Soa incoerente ela em seguida classificar a predestinação, juntamente com o antinomianismo, como “monstruosas doutrinas”, inspiradas por Lúcifer? Soa, mas coerência não é a característica principal dos adventistas.

No entanto, há um fato desconhecido por muitos adventistas: a declaração não é da pena de Ellen White. Trata-se de uma alteração feita W. W. Prescott na edição de 1911 do Grande Conflito. Surpreso pelo espírito de profecia precisar ser revisado e corrigido? Mas foi, aqui e em outros 105 pontos, apenas nessa edição da obra. O que White escreveu, e que consta na edição de 1888, é: "Esta monstruosa doutrina é essencialmente a mesma coisa que a alegação dos romanistas, de que ‘o Papa pode dispensar acima da lei, e do errado fazer certo, pela correção e mudança nas leis”, e que ‘ele pode pronunciar sentenças e julgamentos em contradição... com a lei de Deus e dos homens’”. O filho de Ellen White questionou Prescott sobre a alteração e este a justificou dizendo que a afirmação da senhora White estava errada e que os adventistas se veriam em dificuldades se alguém pedisse a fonte da declaração.

Além do todo da redação ter sido alterado, na versão original, “monstruosa doutrina” está no singular e se refere ao antinomismo apenas e não ao calvinismo conjuntamente. A autora compara “esta monstruosa doutrina” com a revindicação romanista de que o Papa pode mudar as leis de Deus e dos homens, dizendo em seguida que “ambas revelam a inspiração” do Diabo. O singular, a referência ao romanismo e a palavra “ambas” tornam gramaticalmente impossível inserir ali a “predestinação calvinista”, como faz Leandro Quadros. São dois pontos a se ter em conta: as palavras não são de Ellen White e ela não fez referência direta ou indireta à doutrina da predestinação, mas unicamente ao antinomianismo e ao romanismo.

Seja como for, o fato é que Ellen White está trabalhando sobre declarações que não são, de forma alguma, expressões da doutrina da predestinação conforme entendida pelos calvinistas. Prova isso a própria fonte utilizada por ela, a Cyclopaedia of Biblical, theological, and ecclesiastical literature, de John McClintock e James Strong. Esta obra atribui a origem moderna do antinomianismo a John Agricola, um dos primeiros cooperadores de Lutero. Compreendendo erradamente algumas palavras de Lutero e Melâncton sobre a justificação sem as obras da lei, Agricola apregoou a doutrina antinomiana e foi por isso repreendido severamente por Lutero, não uma mas várias vezes, até que admitiu publicamente seu erro e se reconciliou com Lutero. Desnecessário dizer que Lutero era mais predestinista que Calvino e combateu duramente a teoria do livre-arbítrio, veja-se seu Nascido Escravo para confirmar.

Segundo a mesma obra, o antinomianismo foi defendido nos dias de Oliver Cromwell por um tal John Saltmarsh, que entre outras coisas defendia o universalismo e a justificação eterna, ou seja, que os eleitos eram justificados antes mesmo de nascerem, daí sua declaração de que “as ações ímpias que cometem não são realmente pecaminosas, nem devem considerar-se como violação da lei divina por parte deles, e que em conseqüência não têm motivo quer para confessar os pecados, quer para com os mesmos romper pelo arrependimento”, mencionada por White. Saltmarsh foi combatido por Samuel Rutherford, calvinista escocês que participou da Assembleia de Westminster. Mais tarde, o também calvinista Richard Baxter iria refutar seus ensinos.

Ao lado de Saltmarsh, os principais antinomianos da época foram Crisp, Richardson, Hussey, Eaton e Town, segundo os mesmos McClintock e Strong. E estes foram atacados e refutados com sucesso pelos calvinistas Thomas Gataker, Andrew Fuller, Richard Baxter e, principalmente, por Daniel Williams, além de outros. Embora escrita por teólogos de orientação wesleyana, a obra é cuidadosa em distinguir entre hiper-calvinismo e antinomianismo de um lado e o calvinismo dos reformadores de outro. Em nenhum lugar a obra referenciada menciona o calvinismo como responsável pelo antinomianismo, portanto, se White pretendeu dar essa impressão, agiu de má fé, se não foi o caso, seus intérpretes é que a compreendem equivocadamente ou a distorcem deliberadamente no calor do debate.

Creio que as palavras de Charles Spurgeon, extraídas de um sermão pregado em 1859, deixam clara a posição calvinista conforme definida em Wesminster e Dort: “Quantos danos tem sido causados às almas dos homens por homens que só tem pregado uma parte, e não todo o conselho de Deus! Meu coração sangra por muitas famílias sobre as quais a doutrina antinomiana conquistou domínio... Não posso imaginar instrumento mais apto, nas mãos de satanás, para arruinar almas do que o ministro que diz aos pecadores que não é dever deles arrepender-se de seus pecados ou crer em Cristo”. Em seu The History of Dissenters, no qual retrata a época referida, James Bennett diz que o antinomianismo “não resulta do genuíno calvinismo”, como aquele que “era familiar aos escritos e práticas dos grandes reformadores”, mas do “erro que tem sido enxertado por aqueles que são mais ansiosos para abraçar certas partes do que estudar para entender o todo”.
Em seu texto, Leandro Quadro menciona outras citações feitas por Ellen White no Grande Conflito, recorrendo a John Wesley. A obra de John Wesley não tão fácil de se analisar e cada citação deve ser analisada em sua ordem no tempo, além do contexto em que foi feito. Demanda tempo e requer espaço, ambos me faltam no momento, a Providência dirá se os terei no futuro. Por ora, basta-nos concluir que a citação feita por Leandro Quadro como sendo da senhora White e contra o calvinismo não é nem uma coisa, nem outra.
Soli Deo Gloria
Fonte: Cinco Solas

quinta-feira, 14 de março de 2013

Orgulho Espiritual Oculto - por Jonathan Edwards (1703–1758)


A primeira e a pior causa de erro que prevalece nos nossos dias é o orgulho espiritual. Essa é a principal porta que o diabo usa para entrar nos corações daqueles que têm zelo pelo avanço da causa de Cristo. É a principal via de entrada de fumaça venenosa que vem do abismo para escurecer a mente e desviar o juízo. É o meio que Satanás usa para controlar cristãos e obstruir uma obra de Deus. Até que essa doença seja curada, em vão se aplicarão remédios para resolver quaisquer outras enfermidades.
O orgulho é muito mais difícil de ser discernido do que qualquer outra fonte de corrupção porque, por sua própria natureza, leva a pessoa a ter um conceito alto demais de si própria. É alguma surpresa, então, verificar que a pessoa que pensa de si acima do que deve está totalmente inconsciente desse fato? Ela pensa, pelo contrário, que a opinião que tem de si está bem fundamentada e que, portanto, não é um conceito elevado demais. Como resultado, não existe outro assunto no qual o coração esteja mais enganado e mais difícil de ser sondado. A própria natureza do orgulho é criar autoconfiança e expulsar qualquer suspeita de mal em relação a si próprio.
O orgulho toma muitas formas e manifestações e envolve o coração como as camadas de uma cebola – ao se arrancar uma camada, existe outra por baixo dela. Por isto, precisamos ter a maior vigilância imaginável sobre nossos corações com respeito a essa questão e clamar àquele que sonda as profundezas do coração para que nos auxilie. Quem confia em seu próprio coração é insensato.
Como o orgulho espiritual é mascarado por natureza, geralmente não pode ser detectado por intuição imediata como aquilo que é mesmo. É mais fácil ser identificado por seus frutos e efeitos, alguns dos quais quero mencionar junto com os frutos opostos da humildade cristã.
A pessoa espiritualmente orgulhosa sente que já está cheia de luz, não necessitando assim de instrução. Assim, terá a tendência de prontamente rejeitar a oferta de ajuda nesse sentido. Por outro lado, a pessoa humilde é como uma pequena criança que facilmente recebe instrução. É cautelosa no seu conceito de si mesma, sensível à sua grande facilidade em se desviar. Se alguém lhe sugere que está, de fato, saindo do caminho reto, mostra pronta disposição em examinar a questão e ouvir as advertências.
As pessoas orgulhosas tendem a falar dos pecados dos outros: o terrível engano dos hipócritas, a falta de vida daqueles irmãos que têm amargura, a resistência de alguns crentes à santidade. A pura humildade cristã, porém, se cala sobre os pecados dos outros ou, no máximo, fala a respeito deles com tristeza e compaixão. A pessoa espiritualmente orgulhosa critica os outros cristãos por sua falta de crescimento na graça, enquanto o crente humilde vê tanta maldade em seu próprio coração, e se preocupa tanto com isso, que não tem muita atenção para dar aos corações dos outros. Queixa-se mais de si próprio e da sua própria frieza espiritual; sua esperança genuína é que todos os outros tenham mais amor e gratidão a Deus do que ele.
As pessoas espiritualmente orgulhosas falam freqüentemente de quase tudo que percebem nos outros em termos extremamente severos e ásperos. É comum dizerem que a opinião, conduta ou atitude de outra pessoa é do diabo ou do inferno. Muitas vezes, sua crítica é direcionada não só a pessoas ímpias, mas a verdadeiros filhos de Deus e a pessoas que são seus superiores. Os humildes, entretanto, mesmo quando recebem extraordinárias descobertas da glória de Deus, sentem-se esmagados pela sua própria indignidade e impureza. Suas exortações a outros cristãos são transmitidas de forma amorosa e humilde e, ao lidar com seus irmãos e companheiros, eles procuram tratá-los com a mesma humildade e mansidão com que Cristo, que está infinitamente superior a eles, os trata.
O orgulho espiritual comumente leva as pessoas a se comportarem de modo diferente na sua aparência exterior, a assumirem um jeito diferente de falar, de se expressar ou de agir. Por outro lado, o cristão humilde – mesmo sendo firme no seu dever, permanecendo sozinho no caminho do céu ainda que o mundo inteiro o abandone – não sente prazer em ser diferente só para ser diferente. Não procura se colocar numa posição onde possa ser visto e observado como uma pessoa distinta ou especial; muito pelo contrário, dispõe-se a ser todas as coisas a todas as pessoas, a ceder aos outros, a se adaptar aos outros e a agradá-los em tudo menos no pecado.
Pessoas orgulhosas dão muita atenção a oposição e a injúrias; tendem a falar dessas coisas freqüentemente com um ar de amargura ou desprezo. A humildade cristã, em contraste, leva a pessoa a ser mais semelhante ao seu bendito Senhor, o qual, quando foi maltratado não abriu sua boca, mas se entregou em silêncio àquele que julga retamente. Para o cristão humilde, quanto mais clamoroso e furioso o mundo se manifestar contra ele, mais silencioso e quieto ficará, com exceção de quando estiver no seu quarto de oração: lá ele não ficará calado.
Um outro padrão de pessoas espiritualmente orgulhosas é comportar-se de forma a torná-las o foco de atenção. É natural que a pessoa sob a influência do orgulho tome todo o respeito que lhe é oferecido. Se outros demonstram disposição de se submeterem a ela e a cederem em deferência a ela, esta pessoa receberá tais atitudes sem constrangimento. Na verdade, ela se habituou a esperar tal tratamento e a formar uma má opinião de quem não lhe oferece aquilo que pensa merecer.
Uma pessoa sob a influência de orgulho espiritual tende mais a instruir aos outros do que a fazer perguntas. Tal pessoa naturalmente assume ar de mestre. O cristão eminentemente humilde pensa que precisa de ajuda de todo o mundo, enquanto a pessoa espiritualmente orgulhosa acha que todos precisam do que ela tem para oferecer. A humildade cristã, sentindo o peso da miséria dos outros, suplica e implora; o orgulho espiritual, em contraste, ordena e adverte com autoridade.
Assim como o orgulho espiritual leva as pessoas a assumirem muita coisa para si mesmas, de forma semelhante as induz a tratar os outros com negligência. Por outro lado, a pura humildade cristã traz a disposição de honrar a todas as pessoas. Entrar em contendas a respeito do cristianismo por vezes é desaconselhável; no entanto, devemos tomar muito cuidado para não nos recusarmos a discutir com pessoas carnais por as acharmos indignas de nossa consideração. Pelo contrário, devemos condescender a pessoas carnais da mesma forma como Cristo condescendeu a nós – a fim de estar presente conosco na nossa indocilidade e estupidez.
- por Jonathan Edwards (1703–1758)
Fonte: Monergismo