Por Johannes G. Vos
A reforma da igreja em harmonia com as Escrituras está
sempre incompleta na terra. Ecclesia reformata reformanda est (“a igreja, tendo
sido reformada, ainda precisa ser reformada”). Isto resulta do fato de que as
Escrituras são um padrão perfeito e absoluto, enquanto a igreja, em qualquer
ponto de sua história na terra, ainda é imperfeita, envolvida em pecado e erro.
Este processo de reforma tem de ser contínuo até ao fim do
mundo. Em nenhum ponto, a igreja pode parar e dizer: “Cheguei ao final. Até
aqui e não mais adiante”. Somente no céu a igreja triunfante poderá dizer isso.
No processo de reforma, existem certos estágios históricos e
certos marcos de progresso alcançado. Por exemplo, os importantes credos e
confissões históricas são tais marcos de progresso. A Confissão de Fé de
Westminster, por exemplo, marca o verdadeiro progresso da reforma da igreja até
ao tempo em que a confissão foi elaborada.
Nunca podemos considerar este processo como completo em
nossos próprios dias ou em qualquer ponto da História da Igreja na terra. Temos
sempre de esquecer as coisas que ficam para trás e avançar para as que estão no
futuro. Temos sempre de nos esforçar para conquistar aquilo para o que fomos
conquistados por Cristo. A doutrina da igreja, a adoração, o governo, a
disciplina, as atividades missionárias, as instituições educacionais, as
publicações e a vida prática — todas estas coisas têm de ser progressivamente
reformadas em harmonia com as Escrituras.
A reforma sempre tem sido uma realização progressiva e,
necessariamente, tem de ser assim. Os zelosos tentam empreender a reforma de
uma única vez, mas apenas batem a cabeça contra um muro de pedras. Deus age por
meio de um processo histórico — um processo contínuo e gradual. E temos de nos
conformar à maneira de agir dEle.
A reforma bíblica da igreja é o fruto de submissão ao
Espírito Santo falando nas Escrituras.
Não se exige somente o avanço no estudo das Escrituras, um
avanço que sobrepuja os marcos do passado, mas também uma auto-análise
perscrutadora por parte da igreja. Os padrões secundários da igreja têm sempre
de ser sujeitados à avaliação e reavaliação, à luz das Escrituras. Isto está
implícito em nossa confissão de que somente as Escrituras são infalíveis. Se
esta confissão é verdadeira, todas as outras coisas têm de ser constantemente
examinadas e reexaminadas pelas Escrituras.
Não somente os padrões oficiais da igreja, mas também a sua
vida, os seus programas, as suas atividades, as suas instituições e as suas
publicações têm de passar pela autocrítica perscrutadora com base nas
Escrituras. Estas coisas têm de ser testadas sempre à luz da Palavra de Deus.
Essa autocrítica, por parte da igreja, é o correlativo do auto-exame ao qual
Deus, em sua Palavra, exorta todo crente.
Essa autocrítica, por parte da igreja, é árdua. Exige
esforço, inteligência, aprendizado, sacrifício, muita humildade, auto-renúncia
e honestidade absoluta. Requer lealdade às Escrituras, uma lealdade que se
dispõe a fazer tudo o que for preciso para ser fiel à Palavra de Deus — uma
lealdade verdadeiramente heróica e radical para com as Escrituras.
Essa autocrítica, por parte da igreja, pode ser embaraçadora
e dolorosa. Pode significar que a igreja, assim como o Cristão, em O Peregrino,
escrito por John Bunyan, pode se achar na Campina do Caminho Errado e ter de
refazer seus passos, dolorosa e humildemente, até que esteja de volta ao Caminho
do Rei. Essa autocrítica, por parte da igreja, pode ser devastadora para os
interesses e projetos especiais de alguns crentes ou grupos da igreja. Pode
demonstrar que certas características dos padrões, da vida ou do programa da
igreja não estão em completa harmonia com a Palavra de Deus; e, portanto, devem
ser reconsiderados e colocados em harmonia com as Escrituras.
Por estas e outras razões similares, a autocrítica, por
parte da igreja, é freqüentemente negligenciada e, muitas vezes, resistida com
vigor. Aqueles que a defendem ou procuram vê-la realizada provavelmente serão
vistos como extremistas, fanáticos, entusiastas, visionários, criadores de
problemas e coisas semelhantes. No entanto, foi por meio dessa autocrítica que
as reformas do passado se realizaram. Homens como Lutero, Calvino, Knox,
Melville, Cameron e Renwick estavam preocupados apenas com a opinião de Deus em
sua Palavra. Eles não foram impedidos pelas opiniões e atitudes adversas dos
homens.
Quando a igreja ousou realmente contemplar-se no espelho da
Palavra de Deus, com sinceridade mortal, ela esteve em seu máximo e influenciou
o mundo. Ela seguiu adiante com novo ânimo e vigor. Por outro lado, quando a
igreja hesitou ou se recusou a contemplar-se atentamente no espelho da Palavra
de Deus, ela se tornou fraca, estagnada, decadente, ineficaz e sem influência.
A autocrítica denominacional constante, com base nas
Escrituras, é um dever de toda igreja. Mas isto é realmente levado a sério?
Quanto zelo, quanta preocupação — também digo, quanta tolerância — existe hoje
em relação à autocrítica?
Em toda igreja, existe uma tendência constante de considerar
o presente estado das coisas (o status quo) como normal e correto. Assim, o
que, na realidade, é um simples costume passa a ter a força e a influência de
um princípio, enquanto os verdadeiros princípios chegam a ser considerados como
se fossem meras convenções ou costumes humanos, possuindo apenas autoridade
resultante de uso e de aprovação popular. A sanção outorgada pelo uso é considerada
como suficiente para estabelecer um assunto como legal, correto ou necessário.
E, de modo inverso, a falta de uso é considerada como suficiente para provar
que um assunto é errado ou impróprio. Este tipo de estagnação, esta atitude de
considerar o status quo como normal, fecha a porta contra todo o verdadeiro
progresso na reforma da igreja, visto que o status quo é sempre pecaminoso.
Sempre fica aquém das exigências da Palavra de Deus. É sempre menor do que
aquilo que Deus realmente exige da igreja. Uma vez que o status quo é
pecaminoso, ele nunca pode ser considerado com complacência; e, menos ainda,
considerado como o ideal para a igreja. É um pecado tornar absoluto o status
quo.
Sempre precisamos nos arrepender do status quo. Não importa
o quão excelente ele seja, ainda é pecaminoso e precisamos nos arrepender dele.
Considerá-locom complacência é um dos maiores pecados da igreja contemporânea —
um pecado que entristece o Espírito Santo, um pecado que, com certeza, impede a
igreja de realizar seu verdadeiro e correto progresso de reformar-se em
harmonia com as Escrituras.
Uma igreja dominada por esta idéia não pode avançar
realmente. Na verdade, ela pode até cair em declínio e apostasia. No máximo,
ela se moverá em círculo fixo, sempre retornando ao ponto do qual havia
partido.
Deus nos chama a buscar a reforma da igreja em nossos dias.
As igrejas, em sua maioria, se moveram em um círculo fixo
através de sua história passada. Podemos dizer vigorosamente que elas têm se
movido em um ciclo vicioso. O padrão tem sido este: uma dormência seguida por
um avivamento, seguido por uma dormência... O verdadeiro progresso ainda não se
realizou. Parece que o melhor a ser feito é descobrir como sair de um abismo
após outro. Nada é mais prevalecente do que este tipo de estagnação na igreja.
Nada é mais difícil do que conseguir realmente avaliar e reformar qualquer
aspecto da estrutura e das atividades da igreja à luz da Palavra de Deus.
O verdadeiro progresso significa edificar sobre os alicerces
estabelecidos no passado; mas não significa ser dominado pelas mãos letais do
erro e das imperfeições do passado. Existe somente um critério legítimo para
avaliarmos o verdadeiro progresso; este critério é a própria Palavra de Deus. A
verdadeira reforma da igreja é uma reforma alicerçada nas Escrituras. É uma
reforma que ocorre dentro dos limites das Escrituras, não uma reforma que vai
além das Escrituras.
As instituições, as agências, as publicações da igreja
refletem opiniões diferentes, daquelas que ocorrem em nossos dias na igreja? Ou
elas têm de assumir sua posição junto aos padrões oficiais da igreja e manter
essa postura ao confrontar o público? Ou devem ser os pioneiros na autocrítica
denominacional com base nas Escrituras? Elas têm de abrir um novo caminho e
seguir para um novo território à luz da Palavra de Deus?
Estas são perguntas sérias e difíceis. A tendência é
deixá-las de lado e ignorá-las. Elas raramente são enfrentadas. A tendência é
considerarmos o status quo como normal. Ou, se não pensamos assim sobre o
status quo do presente, consideramos como normais, em algum grau, as
realizações do passado. Se pudéssemos tão-somente retornar às coisas como elas
eram nos “excelentes dias de outrora” e manter aquele padrão, dizem alguns,
tudo seria ótimo.
Seria ótimo realmente? O que aconteceu? Não estamos naquela
época. Como podemos nos desculpar por havermos falhado em ir além de nossos
antepassados no entendimento das Escrituras? Como podemos dizer que a reforma
da igreja foi completada em 1560, em 1638 ou, ainda, em 1950? O que temos
feito? Nosso talento foi escondido em um guardanapo?
Não é difícil admitir que na igreja existem alguns males que
precisam de correção. A tendência, porém, é dizermos que, se pudéssemos apenas
retornar aos fundamentos corretos de uma ou duas gerações passadas, tudo seria
como realmente deve ser. O que mais alguém perguntaria? Poderíamos manter
aquela posição por todo o tempo vindouro. Mas isso não seria cumprir os deveres
que Deus nos outorgou. Nossos antepassados reformaram a igreja em seu tempo;
Deus nos chama a reformá-la em nosso tempo. Não podemos descansar em nossos
lauréis. Temos de agir por nós mesmos, pela fé, alicerçados na Palavra de Deus.
A verdadeira reforma busca a verdade e a honra de Deus acima
de todas as outras considerações.
Vivemos em uma era pragmática, impaciente com a verdade,
bastante interessada em resultados práticos. É uma época de impaciência com
aqueles que consideram a verdade acima dos resultados. Nossa era quer
resultados e está bastante disposta a crer que figos nascem em cardos, se é que
pensa ver algum figo.
Quando alguém procura trazer alguma característica da igreja
ao julgamento crítico da Palavra de Deus, já ouvi a objeção de que o tempo não
é oportuno. “Você está certo”, alguns dizem, “mas este é o tempo oportuno para
você trazer este assunto à baila?” Devemos compreender que a verdade é sempre
oportuna e correta; e, se esperarmos um tempo oportuno para a trazermos à
baila, esse tempo pode nunca chegar. Essa época mais conveniente pode nunca
chegar. Sempre haverá uma razão para sermos instados a não realizarmos a
reforma da igreja em harmonia com as Escrituras. Deus é o Deus da verdade. Deus
é luz, e não há nEle treva nenhuma. Cristo é o Rei do reino da verdade. Para
isto Ele veio ao mundo: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é
nascido da verdade ouve a voz de Cristo.
A excessiva prontidão de aceitar o status quo como normal é
um dos grandes obstáculos no caminho da verdadeira reforma e progresso da
igreja em nossos dias. Esta atitude é pecaminosa porque está cega para a
verdadeira pecaminosidade do status quo. Falha em reconhecer que o status quo é
algo do que sempre temos de nos arrepender, algo que sempre precisa ser
perdoado pela graça divina e sempre precisa ser reformado pela igreja, na
terra. Esta atitude falha em compreender a verdade da afirmação de Agostinho:
“Todo bem inferior envolve um elemento de pecado”.
No fundo, esta aceitação complacente do status quo como
normal procede de uma idéia errada a respeito de Deus, uma idéia que falha em
reconhecer a santidade e a pureza de Deus, que falha em compreender o absoluto
caráter das Escrituras como o padrão da igreja.
Colocar a honra e a verdade de Deus em primeiro lugar, acima
de quaisquer outras considerações, exige grande consagração moral. Neste
assunto, aquilo que é verdadeiro para um indivíduo também é verdadeiro para a
igreja: quem perder a sua vida por amor a Cristo, esse a achará.
Fonte: Editora
Fiel